A minha curiosidade irmã das cotovias.
Sentemo-nos aqui. Daqui vê-se mais céu.
É consoladora a expansão enorme desta altura estrelada.
Dói a vida menos ao vê-la; passa por nossa face quente da vida o aceno pequeno dum leque leve.
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego.
O quarto era um todo febril, com vestígios de calor lunar, tão negro como o interior dum caixão enorme, a escuridão espalhava-se por todas as superfícies e, alimentando-se das partículas duma coisa que ele nunca vira, o quarto era a coisa mais negra do mundo.
Yukio Mishima. O marinheiro que perdeu as graças do Mar.
Insónia
A espessura da noite
Mancha de opacidade
Este espaço informe, o pensamento
Imagens vogam, distorcidas
Na ânsia de se
Construírem, caleidoscópicas
O pensamento sucede-se
Busca relevos, qualquer coisa que seja sentido
Qualquer coisa que possa ser
Um pensamento livre, sensível
Uma porção tangível de verdade
Que inunde de luar
O rosto da noite.
Era como se não houvesse nomes, aqui, como se não houvesse palavras. O deserto levava tudo no seu vento, apagava tudo. Os homens tinham a liberdade do espaço no olhar. A areia ocre cobria todos os vestígios, todos os ossos.
J. M. G. Le Clézio. Deserto.
Sheltering Skies. Bernardo Bertolucci
Acordo, do meu sono claro da tarde e
Recomeço o baloiço da cadeira.
O sossego
Do alpendre chama a si um pardal
Que ali pousa, à escuta.
Aceito a sua guarda.
Recosto-me na cadeira
A respirar o perfume das laranjeiras.
Às portas de Istambul ficam
Pensamentos carregados, abandonados
À sua sorte, nos sapatos
E o chão, percorrido de tapetes
Por onde passam, a todo o momento
Gatos
Agracia os nossos passos
Os altos minaretes
Indicam a direcção de novos pensamentos
O olhar eleva-se a
Um sereno céu turquesa
E ai fica, reverenciando
As alturas das mesquitas, dos palácios,
Guardiões repousados
Em profunda meditação,
Pressentindo só a silenciosa presença
A brisa delicada do Bósforo
Empoalha de ouro a minha pele
Pelo ar, alecrim e açafrão
Parados
Uns olhos húmidos cativam os meus
Oferecem-se a uma memória
Istambul enche a minha alma de céu
Os meus-teus braços
Erguem-se ao azul
E rodopiam, ora em transes derviches,
Ora em ritmos de harém.
Nunca podemos ser nós próprios: tinha acabado por compreender esta verdade primeira, que nunca mais esqueceria.
Sim, era uma vez um príncipe que descobriu o problema mais importante da vida: poder ser ele próprio ou não o conseguir. Mas quando Galip começava a imaginar as cores da história, adormeceu sentindo que se transformava noutro, e depois num homem que se afunda no sono.
Orhan Pamuk. Os jardins da Memória.
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