Subir o rio era o mesmo que viajar para trás, até às primeiras idades do mundo, quando a vegetação transbordava da terra e as árvores reinavam. Uma torrente deserta, um grande silêncio, a floresta impenetrável. O ar quente, espesso, muito pesado, mole. A luz solar não tinha alegria.
O Coração das Trevas é um livro curto, mas intenso, exótico e mitómano que, desde 1920, ano da sua primeira publicação em Inglaterra, tem vindo a inspirar cinema e literatura. Foi este livro de Joseph Conrad que serviu de referência a Francis Ford Coppola, nas partes mais perturbadoras do argumento de Apocalipse Now, na década de 70.
A subida épica do rio Congo, até ao coração das trevas, é-nos contada pelo enigmático Marlow, marinheiro-vagabundo, de «espírito caseiro que arrastava consigo a casa - o navio; e a terra - o mar.» É Marlow quem timoneia a viagem de gentes diversas, peregrinos e indígenas canibais, mas todos vagabundos numa terra com ar de planeta desconhecido. Há um registo, visivelmente fantástico, em toda esta descrição.
Podíamo-nos imaginar como primeiros homens que tomassem posse de uma herança maldita a poder de angústias profundas e desmesurado esforço.
Assim é. À medida que este grupo entra selva adentro vai ganhando em ferocidade, em selvajaria pura, o que vai perdendo em humanidade e em razoabilidade. A Natureza torna-se, por conseguinte, manifestação do Mal, das Trevas.
Kurtz, cujos escritos denunciavam um homem notável a princípio, preocupado com práticas idealistas do Bem, acaba, no final, por se colocar nos antípodas daqueles mesmos ideais. Aquele que Marlow vai encontrar, já não é o Kurtz celebrado por todos; kurtz tornou-se a própria selva, a sombra, imenso na sua grandeza maligna.
Marlow regressa com os escritos que Kurtz lhe confiou à Europa; procura a prometida, a mulher que ficou e reclama ter conhecido Kurtz na sua natureza mais genuína: fecha-se o triângulo em torno de um homem formidável, a quem a floresta densa subjugou. Malrow sobrevive a Kurtz... assim como as Trevas que Marlow reconhece a vogar à sua volta, pela Europa, no eco das últimas palavras de Kurtz: «O Horror. O Horror.»
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