KUBLAI KAN: - Não sei quando tiveste tempo para visitar todos os países que me descreves. Eu acho que tu nunca saíste deste jardim.
POLO: - Cada coisa que vejo e faço toma sentido num espaço da mente onde reina a mesma calma daqui, a mesma penumbra, o mesmo silêncio percorrido pelo estalar das folhas. No momento em que me concentro a reflectir, dou comigo sempre neste jardim, a esta hora da tarde, na tua augusta presença, embora continuando sem um instante de pausa a subir um rio verde de crocodilos ou a contar os barris de peixe salgado que colocam no porão.
Italo Calvino, Cidades Invisíveis.
Nunca podemos ser nós próprios: tinha acabado por compreender esta verdade primeira, que nunca mais esqueceria.
Sim, era uma vez um príncipe que descobriu o problema mais importante da vida: poder ser ele próprio ou não o conseguir. Mas quando Galip começava a imaginar as cores da história, adormeceu sentindo que se transformava noutro, e depois num homem que se afunda no sono.
Orhan Pamuk. Os jardins da Memória.
Nas salas amplas, fechadas à vida,
ouve-se o eco dos passos
e o drapear leve das cortinas,
a esgotar-se de encontro aos quadros.
É a chuva, sempre a chuva,
a escorrer das janelas altas
e a encharcar a memória
dos dias
em que as portas se abriam
para entrar sândalo e jasmim.
De quando em quando,
o assobio do vento,
nas sacadas e varandas,
faz-se escutar.
Escuto.
O silêncio desta casa
é a mais solene das músicas.
O universo, todo em noite,
ilumina
o escuro dos bolsos
onde as mãos se perturbam,
sonâmbulas,
a vigiar a vida.
Antes dormissem,
o esquecimento das pedras
que, do chão, prescutam o céu.
Mas não.
De súbito,
a sala cheia de gente indigente,
doente.
Desinteressada e alheada,
a rodear
a cadeira
que enlouquece,
imobilizada.
Havia um tempo em que se chegava por um agasalho
e se pernoitava,
na companhia de um pátio.
Havia um tempo em que se conheciam
as sombras,
e não havia sussuros.
Havia um tempo em que os gatos
se roçavam nas esquinas,
a predizer malícias.
Havia um tempo em que havia tempo
e se demoravam
as tardes.
Havia um tempo, que já não houve.
Somos feitos da substância do tempo. Somos a nossa memória e vivemos dentro da nossa cabeça.
Viajar, num dia de gaivotas,
à tua cidade.
E ficar...
E depois voltar.
- Por vezes não consigo encontrar-me nesta multidão. - dizia a pequena formiga para a sua amiga cigarra.
- Perdes o filão das tuas companheiras, é isso que queres dizer? - perguntou a cigarra, enquanto desenhava uns rabiscos na terra seca do estio.
- Somos todas iguais; a da frente é igual à de trás ... - continuou a pequena formiga.
- Se eu estivesse naquela multidão de formigas, ainda que eu seja uma cigarra, ninguém me notaria. - explicava a cigarra e dos seus rabiscos surgia um arco entre arvoredos - Quando tu estás naquela multidão e todas se mexem e muitas se movimentam e vêm nesta direcção, eu sei quando és tu que vens a chegar...
- Ali não é permitido distracções.- explicou a formiga. - Ali ninguêm vê.
- Sabes, por vezes também eu não consigo encontrar-me nesta multidão. - respondeu a pequena cigarra para a sua amiga formiga, enquanto no seu desenho um sol se elevava acima das frondes.
A formiga olhou o fio bulicioso das suas camaradas e fixou os seus olhos no desenho como num espelho de águas:
- Eu consigo ver-te dali. - disse, por fim.
E ficaram em silêncio.
Uma paisagem ocre:
o deserto, à minha volta.
O ar turvado de canícula
a não deixar ver, na distância,
a miragem...
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