Domingo, 24.05.09

 

The Secret Scripture de Sebastian Barry é daquele tipo de livros que se lêem num folêgo e ficam a ressoar em nós por muito tempo, depois de fecharmos o livro.

A trama fundamental  da história organiza-se em torno de uma mulher centenária, residente no hospital psiquiátrico de Roscommon, a qual,  por intermédio da escrita secreta de uma espécie de memórias, busca o apaziguamento da dor que existiu na sua vida. Apesar de ser intenção de Roseanne tornar esta sua actividade secreta, os registos acabam por ir parar à mesa do médico psiquiatra, doutor Grene, que nesse momento estuda o caso desta paciente para averiguar os motivos que conduziram ao seu internamento. O médico pretende apurar se Roseanne McNulty deve acompanhar o grupo de pacientes a ser transferidos para as instalações de um novo hospital.  Grene deligencia esta mudança de instalações tomado pela dor e confusão, resultante do falecimento recente da sua mulher e, na sequência, do rememorar de vivências traumáticas da sua infância.

Os relatos de vida destas duas almas em tormento, acabam por se ir embrincando até entroncarem numa mesma história que tem nos grandes acontecimentos da História recente da Républica da Irlanda, as suas coordenadas espacio-temporais. Em particular a vida de Roseanne que é a que primeiro sofre o impacto daqueles acontecimentos, por um lado, e por outro a sordidez de carácter das pessoas com quem ela se irá cruzar e que são as mesmas que a deveriam proteger. Apesar do imenso sofrimento da sua vida, o sofrimento que nunca desaparece, Roseanne tem a sabedoria de considerar que a sua dor é pequena quando comparada com a imensa dor do mundo. E conclui:

 

Um homem que se consegue fazer feliz, apesar dos desastres que vêm ao seu encontro, como vêm ao encontro de tantos, sem misericórdia nem favor, é um verdadeiro herói.

 

Ficamos a saber que há vida para além da dor; que  é fundamental confiar na Vida, que é arrogante, na sua altivez, mas magnânima, na sua capacidade de, a todos os momentos,   nos surpreender.

 



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Quinta-feira, 19.03.09

 

 

 

Não tenhas medo, miúda. Em todas as histórias há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz, que seja.

 

A Myra dissera-lhe a sua avó Russa que os suicidas são sempre assassinados. E Myra decide o seu «assassinato» e o do seu cão, Rambo, pois compreende a impossiblidade de viver uma vida sem o confronto permanente com o Mal. Morre de artista e deixa-se cair do parapeito da janela, como se fosse um mergulhador equipado que mergulhasse de um barco para pesquisa submarina. Dizia a sua avó que nos trilhos nevados das estepes, quando  sucumbes e mergulhas na neve, outros virão, pegarão nos teus pertences e continuarão a viagem por ti.  Myra e Rambo, naquele asfalto, são a denúncia e o grito, legados flagrantes a quem passa.


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Terça-feira, 30.12.08

 

O universo ficcional de Flannery O'Connor é feito de sinistra violência. As suas personagens são dominadas por uma loucura contida que, a determinada altura,  jorra em violência crua e vingativa. Francis Tarwater em The violent bear it away  tenta a todo custo fugir a um destino determinado pelo seu tio-avô, um fanático profeta, que o raptou e o preparou para seguir o caminho do pão da vida.

 

O rapaz pressentia que era esse o cerne da loucura do seu tio-avô, essa fome, e o que secretamente temia era que tal condição, pudesse ser hereditária, vir um dia assaltá-lo por dentro, e então seria desmanchado pela fome tal qual o velho, possuidor de um estomâgo com fundo roto de maneira que nada pudesse sará-lo ou enchê-lo, excepto o pão da vida.

 

Quando aquele, por fim, morre,  Tarwater procura escapar a esse destino. Todavia, essa fome ingénita devora-o e domina-o, sem que este lhe possa escapar. Neste processo de aceitação, a personagem, querendo defender-se,  espalha destruição e morte: o afogamento de Bishop no lago e, depois, o fogo que este vai deixando no seu rasto. Não é só a violência por ele gerada, mas também a violência que ele atrai a si. Por fim, é  encurralado e acaba,  entre as labaredas altas de Milton,  por se reconciliar com a sua condição maldita. E é assim que toma o trajecto inverso da estrada, como um condenado.


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Quarta-feira, 10.12.08

 

 

As primeiras páginas de A viagem do Elefante colocam-nos na câmara real de D.João III; um déjà vu a trazer-nos à memória uma cena, em tudo semelhante, desta vez com D.João V, em Memorial do Convento

Uma leitura de A viagem do elefante confirma uma  aproximação maior a Memorial do Convento, mais do que a outros títulos mais recentes do autor, na medida em que é a partir de um facto histórico conhecido que, preenchendo os espaços vazios por meio da imaginação, se contrói  a narrativa da viagem do elefante.  História e ficção complementa-se, numa dialéctica de leitura que assenta na problematização de toda a relatividade da História. De resto, ainda que o autor tenha experimentado outros géneros, a verdade é que nunca abandonou inteiramente o material histórico; mesmo quando este pareceu estar completamente ausente.

 

No fundo há que reconhecer que a história não é apenas selectiva, é também discriminatória, só colhe da vida o  que lhe interessa como material socialmente tido por histórico e despreza todo o resto, precisamente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos factos, das coisas, da puta realidade.

 

O livro é uma viagem, de Belém a Viena, de um elefante indiano e do seu cornaca, presente do rei português a Maximiliano II, genro de Carlos V, sendo que a narração desta viagem-odisseia reconstrói a diversidade de momentos que preenchem uma existência e que, por vezes, fazem com que esta se cruze com os grandes acontecimentos da História. Os dois intervenientes desta história são resgatados duma subsistência salobra para uma experiência grandiosa que coloca os dois, cornaca e elefante,  no curso dos grandes eventos da história: as questões teológicas da Igreja; as fragilidades geopolíticas da Europa de 1600; a travessia dos Alpes, proeza só igual em Aníbal;  até à chegada apoteótica a Viena, agraciada pela entrada em cena de uma criança. O elefante morreu dois anos depois - Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam -; dele restou as suas patorras transformadas em suporte de bengalas.

 

Existe neste livro, muita auto-referencialidade do escritor ao seu próprio universo ficcional; existe muia ironia e muita lucidez. Enquanto o escrevia, parou, refregou a morte e retomou-o, sem prejuízo dessa constante ironia e lucidez, como se assim tivesse de ser.

A moral é-nos dada nesta imagem:

 

Cada um é para o que nasceu, mas há que contar sempre com a possibilidade de que nos apareça pela frente excepções importantes, como é o caso de solimão, que não nasceu para isto, mas a quem não restou outro remédio que inventar por sua própria conta alguma maneira de compensar a inclinação do terreno, como foi esta de alongar a tromba para a frente, o que lhe dá o ar inconfundível de um guerreiro lançado à carga e a quem esperam morte ou glória.

 

 

 


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Terça-feira, 21.10.08

 «Weltzchmertz» significa, em alemão, a dor do mundo.

 

 

Edvard Munch, Melancolia. 1894-95

 

«Seria melhor que não houvesse nada. Como há mais dor do que prazer na terra, toda a satisfação é somente transitória, criando novos desejos e novas infelicidades; a agonia do animal devorado é maior do que o prazer do devorador.»

Shopenhauer, citado por Jonathan Littell em As Benevolentes.  


Música Radiohead
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Domingo, 19.10.08

Heart of darkness

 

Subir o rio era o mesmo que viajar para trás, até às primeiras idades do mundo, quando a vegetação transbordava da terra e as árvores reinavam. Uma torrente deserta, um grande silêncio, a floresta impenetrável. O ar quente, espesso, muito pesado, mole. A luz solar não tinha alegria.

 

O Coração das Trevas é um livro curto, mas intenso, exótico e mitómano que, desde 1920, ano da sua primeira publicação em Inglaterra, tem vindo a inspirar cinema e literatura. Foi este livro de Joseph Conrad que serviu de referência a Francis Ford Coppola, nas partes mais perturbadoras do argumento de Apocalipse Now, na década de 70.

 

A subida épica do rio Congo, até ao coração das trevas, é-nos contada pelo enigmático Marlow, marinheiro-vagabundo, de «espírito caseiro que arrastava consigo a casa - o navio; e a terra - o mar.» É Marlow quem timoneia a viagem de gentes diversas, peregrinos e indígenas canibais, mas todos vagabundos numa terra com ar de planeta desconhecido. Há um registo, visivelmente fantástico, em toda esta descrição.

 

Podíamo-nos imaginar como primeiros homens que tomassem posse de uma herança maldita a poder de angústias profundas e desmesurado esforço.

 

Assim é.  À medida que este grupo entra selva adentro vai ganhando em ferocidade, em selvajaria pura, o que vai perdendo em humanidade e em razoabilidade. A Natureza torna-se, por conseguinte, manifestação do Mal, das Trevas.

Kurtz, cujos escritos denunciavam um homem notável a princípio, preocupado com práticas idealistas do Bem, acaba, no final, por se colocar nos antípodas daqueles  mesmos ideais. Aquele que Marlow vai encontrar, já não é o Kurtz celebrado por todos; kurtz tornou-se a própria selva, a sombra, imenso na sua grandeza maligna.

Marlow regressa com os escritos que Kurtz lhe confiou à Europa; procura a prometida, a mulher que ficou e reclama ter conhecido Kurtz na sua natureza mais genuína: fecha-se o triângulo em torno de um homem formidável, a quem a floresta densa  subjugou. Malrow sobrevive a Kurtz... assim como as Trevas que Marlow reconhece a vogar à sua volta, pela Europa, no eco das últimas palavras de Kurtz: «O Horror. O Horror.»


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Sexta-feira, 10.10.08

Frank Lloyd Wright, Taliesin

Frank Lloyd Wright, Taliesin

 

Querido Frank, no original Loving Frank, é um romance histórico. O primeiro da sua autora, Nancy Horan ao qual diz ter dedicado sete anos da sua vida.

Este livro baseia-se na relação de Frank Lloyd Wright e Mamah Borthwich Cheney; o famoso arquitecto americano do século XX e a intelectual, defensora dos direitos da mulher, e também tradutora de Ellen Key, respectivamente. É um livro de factos e ficção.

Ainda que seja a partir da perspectiva de Mamah Cheney que  entramos na história da luta,  sua e de Frank, pela afirmação da individualidade e da personalidade, contra a Opinião e a contingência é, todavia, na perspectiva de Frank que temos as reflecções mais contundentes: Isso nunca poderá ser perdoado num mundo de homens. Uma mulher continua a ser uma propriedade.

A sua relação nunca foi completamente aceite pela sociedade de 1900 e as suas vidas foram, até ao fim, cruelmente devastadas nos jornais da época.   Os jornais tornam-se, por conseguinte, uma fonte parcial para documentar uma personalidade complexa como a de Mamah Cheney, tanto que a autora chega a lamentar, no posfácio, a inexistência de cartas que, por certo, se tornariam fontes mais fidedignas ao serviço da ficção. 

Pelo olhar de Mamah somos introduzidos no processo de criação de Frank, nos altos e baixos da sua genialidade, na construção de Taleisin, na construção de uma vida fundada numa «verdade» fundamental - Só se vive uma vez neste mundo. Citação de Goethe.

A vida contudo é feita de ironias intangíveis. Quanto tudo se aconchega, surge a devastação num  fim imprevisível, a provar que a realidade,  muitas vezes,  supera em terror a ficção...

Frank:  Mamah e eu tivemos os nossos conflitos, as nossas diferenças, os nossos momentos de receio enciumado - nada disto escasseia em qualquer relação humana de carácter íntimo - mas serviram apenas para nos unirmos ainda mais fortes. Sentíamo-nos mais do que meramente felizes, mesmo quando momentaneamente infelizes...

A alma dela ingressou em mim e nunca se perderá.

 


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publicado por Mnemosine às 21:48 | link do post | comentar

Quarta-feira, 24.09.08

 

Na capa de Campo Santo de W.G. Sebald lê-se, numa referência ao Sunday Times, ser este um título «indispensável à compreensão da obra» deste autor tardio. A leitura deste livro não só confirma esta expectativa, como nos induz no desejo de voltar a títulos anteriores a este, só na ordem de publicação: Emigrantes, Anéis de Saturno, História Natural da Destruição ou Austerlitz. Nesta leitura, reconhecemos as linhas orientadoras do autor: o trauma duma Alemanha pós-guerra que procurou o esquecimento colectivo; a presença dos mortos, no esforço de memória dos vivos; a busca da identidade diluída, pela experiência da emigração e do afastamento e, ainda, o rememorar inesperado de vivências antigas que conduzem o indivíduo ao abismo.

Reconhecemos sobretudo a ideia da vida como um itinerário de solidão. Nos trilhos da memória, somos conduzidos às cidades alemãs devastadas; às paisagens campestres e industriais do noroeste de Inglaterra; aos glaciares e montes suíços; à Córsega; a uma pintura numa sala de um museu ou mesmo a uma árvore imponente, numa floresta milenar. O evocar da memória é uma constante deste autor  que, em determinado ponto, nos recorda que a «literatura pode corrigir as injustiças do mundo.»

 


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publicado por Mnemosine às 14:09 | link do post | comentar

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