Sonhou o mar e a lágrima.
Sonhou que ao longo dos verões, ou num céu anterior aos verões, há uma única rosa.
Jorge Luís Borges
Sonhou as portas abertas, fechadas e entreabertas. Sonhou as janelas.
Sonhou a água corrente, translúcida de terna alegria.
Sonhou sorrisos assim, definidos de seda e cetim.
Sonhou as salas vazias, cheias de silêncio e deslumbre.
Sonhou os trilhos, amortalhados de sombras verdes, frias.
Sonhou os passadiços, ladeados do ouro das dunas.
Sonhou um passo de dança, uma indie song.
Sonhou que eu sonharia o sonho de penélope.
e Sonhou ulisses, para que eu sonhasse.
Confesso que tenho medo, mas não sei bem de quê, nem de quem. Sei que uma destas noites uma mulher muito pálida e bela baterá docemente à minha porta e me pedirá que a acompanhe, ouvindo-se em fundo uma melodia de Mozart.
É por isso que acordo tantas vezes alagado em suores frios, talvez por ter medo da única presença que me há-de libertar de tudo o que sofri e que terá corpo e rosto de mulher sem idade nem rosto visível e que me levará pela mão, (...) até onde podem ir os derradeiros sonhos de um homem que passou a vida a fugir do grande amor. (...) e acabou por ficar condenado à mais terrível das solidões.
José Jorge Letria. O Espelho de Casanova.
Saboreia os beijos, antes das lágrimas
e saboreia as lágrimas, depois dos beijos.
Saboreia antes que se desvaneçam
num vazio feito de ruído e ausência.
Escuta o oráculo recôndito do sangue
que, das brisas suaves, recolhe
prenúncios de delícias. Escuta, antes
que as tuas mãos se esvaziem de esperança.
Respira a manhã, antes que anoiteça
e respira a noite, antes que amanheça, e
as mornas tardes da infância, num tempo
que não sabia a tempo, só a maresia.
Sente o amor, sente antes que cesse.
Quando te rodearem murmúrios
Que valor terá o teu epitáfio,
se a vida não te pertenceu.
Some devil some angel has got me to the bones
you said always and forever is such a long and lonely time
O quarto era um todo febril, com vestígios de calor lunar, tão negro como o interior dum caixão enorme, a escuridão espalhava-se por todas as superfícies e, alimentando-se das partículas duma coisa que ele nunca vira, o quarto era a coisa mais negra do mundo.
Yukio Mishima. O marinheiro que perdeu as graças do Mar.
Insónia
A espessura da noite
Mancha de opacidade
Este espaço informe, o pensamento
Imagens vogam, distorcidas
Na ânsia de se
Construírem, caleidoscópicas
O pensamento sucede-se
Busca relevos, qualquer coisa que seja sentido
Qualquer coisa que possa ser
Um pensamento livre, sensível
Uma porção tangível de verdade
Que inunde de luar
O rosto da noite.
Era como se não houvesse nomes, aqui, como se não houvesse palavras. O deserto levava tudo no seu vento, apagava tudo. Os homens tinham a liberdade do espaço no olhar. A areia ocre cobria todos os vestígios, todos os ossos.
J. M. G. Le Clézio. Deserto.
Sheltering Skies. Bernardo Bertolucci
Nunca podemos ser nós próprios: tinha acabado por compreender esta verdade primeira, que nunca mais esqueceria.
Sim, era uma vez um príncipe que descobriu o problema mais importante da vida: poder ser ele próprio ou não o conseguir. Mas quando Galip começava a imaginar as cores da história, adormeceu sentindo que se transformava noutro, e depois num homem que se afunda no sono.
Orhan Pamuk. Os jardins da Memória.
Homo Homini Lupus é uma das máximas mais inabaláveis da moral eterna.
Cada um de nós tão pobre, tão frágil, tão facilmente arruinável e destruído.
Como não temer em cada um dos nossos semelhantes um lobo que espreita a sua hora.
Continuo a pôr-me a questão:
quais são as recordações cujo peso, à medida que envelhecemos , a nossa memória rejeita, semelhante a uma besta de carga indócil que sacode um fardo demasiado pesado, quais as que detesta mais ou quais as que mais facilmente lhe fogem?
Orhan Pamuk. Os jardins da Memória.
Cultura
Actualidade